Carta aberta aos teus pedaços

09

Escuta. É claro que eu poderia te copiar alguns haikais do Leminski ou te escrever dezenas de frases dúbias em um e-mail despretensioso. Mas se eu tiver que ser sincero em algum momento aqui, gostaria de usar papel e caneta para dizer logo que sim: tenho pensado em ti. Muito, e não apenas por aquele beijo no portão da sua casa. É que além de tudo, acho que você precisa mesmo de uma carta escrita à mão, sem volta, dessas que chegam de repente, baseadas em uma vontade urgente e algumas rasuras tradicionais.

Sei que fazem alguns dias e gostaria de ter escrito antes, é que estive viajando pelo interior das Gerais e o tempo me consumiu – mentira, o tempo é só um argumento prolixo usado em todas as desculpas injustificáveis. Tenho escrito pouco, é a verdade. Porque escrever é tirar um peso de você mesmo a cada linha preenchida. E nem sempre a gente está disposto a abandonar o que sente. Gosto de absorver, mais do que de registrar. Ainda assim, guarde essas palavras tardias contigo: que bom te ver de perto.

As pessoas precisam disso, te disse: do tato entre peles, da presença do corpo disposto, da saudade mútua tirada à prova, dois copos lagoinha cheios de cerveja sobre a mesa, um papo bom. E pronto. A cidade não parece tão sufocante como se mostra diariamente por todos os cantos, algumas fagulhas de vontade de fazer diferente se acendem na escuridão que ainda há pouco era apenas uma mancha sem sentido.

E não importa se a vida continua a mesma, se nos matamos com a porra daquele emprego de doze horas numa firma estatal ou se religiosamente bate à porta o fim do mês junto com o medo do futuro frustrante. Não importa porque é preciso ser feliz como um samba, mesmo que como um samba triste de vez em quando, mas ainda assim, como um bom samba.

Não se engane. Os caras vão continuar babando para os seus lábios de cinema, seu decote aberto e as cores vivas das suas tatuagens viciantes. Mas quem sabe um dia você deixe de se sentir um pedaço de carne pendurada no açougue nessas situações e perceba que talvez te reparem de outro ângulo.  Por exemplo, quando você bate os punhos na mesa abalada pela quarta cerveja, espreme os olhos fazendo os óculos deslizarem sem querer pelo nariz e desenha ruguinhas involuntárias de insatisfação na testa: como se pedisse uma pausa por atenção e fizesse uma súplica a contragosto por uma felicidade pequena, instantânea e sem máscaras.

Não é preciso saber muito de você para perceber o quanto é apaixonante.

Eu mesmo, sei apenas que seus sentimentos são mais altos do que o tom de voz que você usa para falar deles, que decorou todas as cenas de Doctor Who e que não importa se é em um boteco ou num casamento, você sempre vai chegar com fome. Sempre. Por conta própria, pude sentir também que você transpira uma vontade que me acerta pelas tabelas e possui um abraço tão bom que só foi possível descobrir de verdade mordendo os pedaços da sua boca.

Se eu tivesse que te escrever apenas um recado no espelho do banheiro, te pediria para não contar as horas ou os dias e deixar as janelas abertas. Quanto ao dilema de viver amores de plástico, nem tudo vale realmente a pena para não ficar só. Veja bem, a noite em Paris é muito bonita, certamente. Mas isso não significa muito quando a gente se sente estraçalhado para dividir um travesseiro em um hotel na Champs-Élysées, insone com o peso de não viver aquilo que a gente é. Entende?

Algumas coisas só fazem sentido quando são transformadas primeiro por dentro, não necessariamente apenas por fora. Você sabe, claro. Independente daquilo que permaneça ou se dissolva, não se esqueça de acreditar em pelo menos três certezas seguras da vida. Como diria o Marcelo Rubens Paiva: “o rock não morre, a história não tem fim, o amor não acaba”. Tudo apenas muda e com toda razão, já cantou o poeta.

Com carinho de quem te gosta,

Lucas Simões

Epitáfio

16

Estou atrasada. Mas não me refiro a nós dois ou isso que mesmo com o passar dos anos ainda insistimos em chamar de nós dois. Me refiro ao meu voo, que sai em trinta minutos e ainda digito este texto torta no táxi rumo ao aeroporto. Há muito não escrevo uma carta, dessas com direito a selo e tudo o mais, depositadas na caixa de correio por aquele carteiro camarada da tua rua (me conte se ele ainda usa shampoo para calvície? Bizarro). Bom, te devo satisfações pela forma como saí correndo do velório do pai da Gabi – e como não sou capaz de completar um telefonema ou bater em sua porta, restam apenas palavras apressadas em Arial 12.

Eu também fiquei arrasada, se quer saber. Mas não me refiro à morte de um cara que nunca deu a mínima para a filha – aquele merda. Me refiro a te encontrar vestindo terno e gravata skinny (que cena), em um cemitério estranho e impessoal, depois de seis anos sem notícias. Sei que você tocou o canto da minha boca de propósito quando se aproximou e disse “ei, pequena” – como se tivéssemos nos visto ontem. E aí me abraçou como se abraça uma namorada legítima: demoradamente com vontade. E por um momento, quando tocamos as mãos com força disfarçadamente olhando aquele caixão, pensei que pudéssemos não ter envelhecido. Aí te olhei de esguelha e constatei que quem segurava a minha mão era um estranho por quem tenho total tendência para me apaixonar.

Não sei nada de você. Só que ainda provocamos faíscas raras um no outro.

É engraçado porque já nos desencontramos tanto por agir através desses impulsos inesperados, por viver sentimentos que não sabemos comportar no dicionário, por querer o mundo inteiro de uma vez só, por esse suor relatando ansiedade entre nossos dedos cruzados. E, hoje, no final de todas as contas e mais uma volta sacana do mundo, o que  somos nós, afinal? Não somos amigos nem colegas, muito menos amantes ou namorados: somos só saudade. Saudade de um tempo que não sabemos em qual parte da história encaixar. Foi por isso que inventei uma cólica e saí desembestada empurrando familiares e um funcionário da funerária sem tempo para questionamentos.

Para não viver tudo outra vez.

O amor era a coisa mais importante para você – e pelo calor da sua boca, continua sendo. Uma inevitabilidade, na sua própria definição. Mas pra mim, amor nunca passou de um luxo. Quase uma utopia, uma fase que a gente se permite desfrutar quando tudo parece ir bem pelo acaso de sugestões astrológicas e milimétricas do destino. Eu simplesmente não queria dedicatórias eloquentes. Eu queria gostos diferentes, experiências atraentes e um dia quem sabe uma casinha de sapê meio Paula Toller e coisa e tal. Não foi bem por aí. Me mudei para São Paulo, quase tive um filho, inaugurei exposições de fotografia aplaudidinhas pela imprensa e finalmente comprei um Labrador para o meu jardim (sim, eu tive um jardim em uma das cidades mais concretadas do mundo).

Mas nem tudo são flores. Veja bem: hoje estou melhor, sem a obrigação de corresponder ao seu tom exagerado de gostar de alguém pra valer, mas ainda é como se faltasse um pedaço intrigante da minha história que não aprendi a lidar: a parte que eu chamo de você. É dessa forma que as pessoas se sentem quando têm um grande amor ou qualquer coisa assim na vida para guardar, não é? Grande amor, risos. Eu detesto essa expressão porque me sinto presa a um sentimento que não escolhi e não acredito com toda essa fé católica. Eu sou não praticante do amor. Mas às vezes me rendo a uma oração em tempos de desespero.

É por isso que estou te escrevendo.

Covarde, não é? Entendo. Mas é isso que eu sou. Covarde. “A vida é feita de coragem. Coragem, amor”. Ainda posso te ouvir fazendo juras para um sentimento que nunca teve razão ou propriedade de certeza. O problema é que a minha coragem tem mais medo do que vontade de existir, meu bem. Lembrar da nossa história é querer apagar um câncer onipresente que ressuscita de tempos em tempos para me testar. É não conseguir rebobinar um sonho que foi deletado pelo nascer do dia sem pedir a sua permissão. É tentar ficar em pé em uma canoa em meio à tempestade do alto mar. Amor é coisa de gente simples como você: gente que manifesta mais atitudes do que dramas.

Espero que depois de ler tudo isso você continue repetindo que não se importa com os meus muros de Berlim. Por que mesmo com tantos desencontros e sacanagens, se eu tivesse que escrever um epitáfio para nós dois, mandaria grafar em letras claras e pontuais: isso não termina aqui. A melhor sensação do mundo, sem mais. Preciso ir porque embarco agora, é, neste minuto mesmo. Sim, eu cheguei a tempo. Só não sei quando volto.

Com carinho,

Ela que ainda atende pelo sobrenome de sua.

P.S.: Deixa a vida existir do jeito dela. Deixa os inícios, meios e fins desatarem os seus próprios nós, amor.

Lucas Simões

Plano B

E lá estou eu outra vez, agarrada a um cara numa cama de solteiro, com o corpo estendido para um lado só meu do colchão. Continuo de olhos abertos, pregados num ponto fixo da parede descascada do quarto… Longe, atraída pelas marcas empoeiradas de durex que há algumas semanas ainda prendiam fotos, guardanapos com borras sentimentais de café e outras coisas não-importantes agora. “Everybody’s gotta learn sometime”. Eu quero água, a habilidade de levantar da cama sem fazer barulhos no assoalho e desculpas melhores da próxima vez que pensar em fugir de alguém no meio da noite assim, à procura da escadaria de incêndio com uma placa luminosa indicando a saída.

Meus pretextos fizeram de mim o pedaço flutuante de gente que eu sou hoje. Desculpas sinceras – é como eu chamo os artifícios que usei para ir embora de tanta gente. Minha cabeça é fraca e meu coração meio bandido por causa das cápsulas e rostos que fui tirando e desconstruindo da minha vida a cada nova expectativa e erro de cálculo. Desde pequena acredito que pra sempre é apenas uma certeza com limites que não dão para enxergar ou tocar. Mas que ainda assim estão lá, prontos para dar as caras uma hora qualquer. Fodi vários romances explicando essa teoria. Embarcando em um teatro de sobrevivência repleto de máscaras, encenado ao Deus dará, do jeito que o Diabo gosta.

O problema é que eu me acostumei com as mudanças e todas as filosofias baratas de novos ares, bola pra frente e sorriso forçado no rosto que essas representações me trouxeram – me envolvi demais com a liberdade, aquela loucura nos textos do Jack Kerouac, sexo, drogas e Rolling Stones. Até me tornar uma moça de vinte e sete anos de idade com apartamento próprio e promoção à vista no escritório, foram muitos cortes de cabelo diferentes e uma coleção de pequenos grandes amores criados em um aquário de aflições movimentado. Mas agora, sentada na bancada da cozinha semi-nua-e-bêbada por uma garrafa de vinho promocional de supermercado, volto a pensar se existiu mesmo um plano pra mim e em qual parte dele eu abandonei minha metade da laranja. Aperto um baseado. Apago tudo.

Lembro apenas que foi como se uma caixinha de fósforos tivesse parado de tocar dentro de mim e eu tivesse me perdido do ritmo comum da multidão. Eu não estava mais sambando, nem ligando tanto para como as coisas iriam seguir – com você, sem mim. Aí te vi ali, parado na esquina, do meu lado, com as mãos no bolso, sem conseguir te enxergar. Enxergar do jeito que eu te vi centenas de vezes pela primeira vez, sabe? Aquela forma de existir que revirava minhas gavetas e dava conta de tudo. E eu gostava… gosto, sabe como é, tanto de você que. Só quis nunca mais passar por esse tipo de amor. Esse, que não aceita “não” como resposta e permanece no mesmo lugar – não importa o quanto você mude. Nem quantos finais se repitam. Absolutamente nunca.

Me assusta pensar que uma coisa nasceu para não morrer. Tanto quanto me conforta e me ilude por duas horas e meia de insônia – enquanto eu cheguei a pensar que não retomaria os meus sentidos de volta. Sei que não vou voltar para a cama hoje, e provavelmente o cara que dorme engrenado no meu quarto vai bater no meu pé amanhã e me acordar com as pernas tortas no sofá. Então, vou evitar beijos de bom dia exibindo um mau humor sacado, passar um café novo e ficar olhando a porta durante muito tempo. Aí depois, é sempre depois. As mesmas desculpas espontâneas para todos os fins. Mentiras sinceras, eu diria – mas ainda assim, mentiras. As pessoas se separam por não suportarem mais a possibilidade cada vez mais viva de acabarem infelizes, de mãos dadas num beco sem saída, presas por motivo nenhum. Elas só demoram para entender isso.

Quanto a você. Eu ainda vou continuar pensando em você pelos próximos dias, como se mais um término com o milésimo cara estranho que conheço fosse outro sinal acendendo entre nós dois para uma mudança. Sete números no visor de um celular, cursor piscando na caixa de texto do seu endereço de e-mail, não sei como começar. Expectativas insanas, let it be. Porque a única coisa que aprendi te amando sem pensar foi que ainda valeria a pena – esse é o perigo. Às vezes eu imagino como você se sente, mora, come, trabalha e anda pela rua. Te procuro nas imagens embaçadas que tenho das nossas mãos e pés juntos embaixo de lençóis grandes de casal, mas não sou mais capaz de encontrar o fio da meada. Você é meu em algum lugar em que eu estive, mas nunca mais consegui voltar.

 Lucas Simões

De quanto tempo você precisa para ficar comigo

Eu não gosto do senso comum, nem da opinião das pessoas, nem das mensagens complicadas sobre sentimentos, nem de vodka ou da Ivete Sangalo, quanto mais ficar sem você. Mas, a gente se adapta, eu acho. No fundo, às vezes eu rio depois de chorar – coisa impensável naqueles tempos teus… meus, nossos, ah… a gente sempre mistura tudo mesmo. Acho que no fundo estou mais bem acomodado no olho do furacão. Aquilo que você quer saber não mudou. Mas acho que finalmente entendi que aglumas coisas não são certas ou erradas, não fazem bem ou mal: gostar de você não é um defeito, é só uma referência, let it be.

Não foi uma menina atraente que fez isso comigo, ou um beijo despretensioso numa boca aberta que me deixou mais assim pra vida. Admito que as pessoas têm lá seus talentos pra convencer a gente, seduzir e encantar. E gosto disso. Que existam pessoas dispostas a ser transformadas e transformarem a gente de algum jeito. Com você eu sei que não foi bem assim, mas comigo alguma coisa aconteceu e me subverteu numa ordem encantadora de ser eu mesmo ou isso que chamo de eu mesmo na frente do espelho sem peso nenhum nas costas por te carregar e reinventar dentro de mim.

Outras coisas continuam no mesmo lugar. Não pago por sexo, não fumo menos, não acompanho futebol, não dirijo e não finjo que não te amo mais pra mostrar que te amo. Te ligo e mando beijo rindo. E sei que você ri de volta. Aí dá vontade de ligar de novo e ficar nessa bobagem de render contigo até sentir aquele inconsciente de ter saudade estando perto e ver como o tempo voa e para nesse clichê gasto de tanto gostar.

Eu queria mesmo que um dia você chegasse devagarzinho, me abraçasse de frente e dissesse no canto do meu ouvido: senti sua falta. Ou que você acendesse um isqueiro e fosse me ameaçando com um galão de gasolina na frente, pra entrar no meu colo, na minha vida e no meio de todas as minhas coisas à força. Eu sempre esperei demais de você, tá certo. Assim como você cronometrou meu tempo de ter alguma atitude que você nem sabia expressar de forma ideal. E esse é apenas nosso primeiro desencontro: os outros nem dão mais tempo de contar.

Gosto de pessoas simples e momentos doces, talvez por isso tenha aberto um pouco mão de ditar para que lado têm que andar as suas complicações e insatisfações. Não quero que segure a minha mão ou se case comigo, nem que diga coisas fortes para preencher nosso protocolo de se gostar absurdamente em determinada semana do mês: quero só o que for de verdade. E pode ser nada demais: se for só meu.

Outro dia você tava com cara de bem dormida. Num sentimento de querer dar certo, numa felicidade de glacê cênica. Pronta pra se foder de novo por um novo amor, se for preciso. Acho bonito. Você, tão sexo frágil e salto alto, convencendo de mulher bem vivida no meio da irresolução das coisas. Acho que você age mais ou menos assim quando quer esconder tristeza ou um descontentamento: cantando um pedido de socorro desesperado com alegria.

Talvez seja uma forma de dizer: eu sofri muito rindo na foto e você não viu. As pessoas sofrem tentando ser felizes. Querendo ou não. “Don’t you know it’s gonna be, all right”, deixe ser, é o jeito. No fundo você concorda. Que tá fazendo? Vendo novela, fofocando, misturando um macarrão com palmito e champignon, escrevendo uma mensagem pro seu namorado… Acho que a gente sempre se engana nas coisas, sentimentos, informações e atitudes. Não acredito que isso faça diferença depois, assim como não acredito na profecia de no-final-das-contas.

Eu sempre me perguntei por que raios a gente tinha que ir embora. Depois, pra voltar, é muito pior. Você sabe. Mas sabe também que pessoas indiferentes causam dores indiferentes – estereótipo que a gente nunca foi. Então, tudo o que a gente sofreu, se cansou, desgastou e perdeu, foi por um bom motivo. Disso eu sei, nós dois sempre seremos um ótimo motivo para tudo dar certo, mesmo que tenha dado errado.

 Lucas Simões

Frágil

Porque amor… minha querida, não é todo mundo que aguenta, não. Pra mim, amor devia vir lacrado em uma caixa bem protegida com um aviso: frágil. Proibido para brincadeiras imaturas. Impróprio para quem nunca soube o que é perder alguém de verdade. Desaconselhável para pessoas que não gostam de sofrer. Não recomendável para casais tentando ser felizes com o peso de outro alguém no peito. Ou seja, confuso.

 Lucas Simões