Homens e relacionamentos

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Falo de homens, claro.

Eles se debatem no interior dos relacionamentos como se estivessem se afogando. A mulher é bacana, a vida é boa, o sexo flui como música de câmera – mas o sujeito soçobra em ansiedade, incapaz de aquietar-se. Seu desejo se multiplica em todos os sorrisos, todos os cabelos, todo quadril largo ou estreito que passe requebrando. Ele muitas vezes nem faz sexo além da cerca, mas… sua fidelidade se restringe ao sentido forense da palavra – não há contato físico, mas sobra imaginação e sofrimento, com terríveis consequências.

A relação verdadeira, que começara apaixonada, vai murchando. A sombra da tristeza invade a casa dele, a cama dele, o sorriso da mulher dele. Mas ele não sabe que precisa opor-se a isso. Acredita que o amor tem de brotar pronto e perfeito, sem esforço. Assim, ele desiste. Deixa rolar, broxar, o sentimento esvair-se. É um espontaneísta, afinal. Ou uma anta, como perceberá logo depois. Mas então o barco já terá virado.

Ainda bem que o tempo existe.

Com ele, aprende-se a importância das coisas. Com a soma das experiências repetidas, mesmo um sujeito lerdo – e são quase todos – entende que é preciso cuidar da mulher que ele ama. Não apenas como um objeto de prazer que pode irritar-se e partir. Não apenas como algo que ele pode perder. Mas como uma parte essencial da vida dele, que tem de ser preservada e aprimorada. Com o tempo e com boa vontade, o sujeito aprende a reciprocidade. Mas leva tempo.

(Ivan Martins)

Nós, incompletos

Desde quando ficou feio precisar do carinho e da atenção do outro?

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Gente perfeita não precisa dos outros. São tipos como você e eu que necessitam das qualidades dos parceiros. Eles nos emprestam organização, paciência e disciplina, em troca de humor, espontaneidade e imaginação. Eles nos dão coragem quando somos covardes, nos acalmam se estamos em fúria e elucidam, com a sua inteligência, tramas que nós seriamos incapazes de enxergar. Eles não são melhores do que nós, mas são diferentes – e isso, boa parte das vezes, é essencial. 

Enfatizo tamanha obviedade porque estamos sufocados pela ideia de perfeição. Para garantir a nossa posição no relacionamento (e no mundo) temos de ser bonitos, inteligentes e bem-sucedidos. Além de totalmente independentes, claro: estou com você porque eu quero, não porque preciso, entendeu? Precisar do amor e da atenção do outro é feio. 

Tenho um amigo que há pouco menos de um mês quebrou o braço direito. Nas primeiras semanas depois da queda – e da cirurgia que se seguiu – ele virou um dependente físico. Precisava da namorada para amarrar o seu sapato, ajudá-lo a tomar banho, vestir a camiseta e cortar o bife. Vendo os dois naquela cena de enfermagem, num almoço de domingo, me ocorreu que, sem ela, ele estaria frito. Iria se virar de algum jeito, claro, mas sem a sensação gostosa de ser cuidado e querido, que deve ter feito diferença enorme durante a chatice da recuperação.

Acho que esse caso encerra uma metáfora sobre os nossos relacionamentos.

Nós todos nascemos com algo quebrado dentro de nós. Essa fratura primordial impede a auto-suficiência e exige a presença do outro. Uma pessoa amada, querida ou apenas desejada mitiga a nossa dor original e provê, com a sua presença, algumas sensações essenciais. Ela nos dá o prazer do contato corporal, ela garante a segurança de não estarmos sós, ela oferece, com seus olhares e seus gestos, a admiração e o carinho sem o qual a nossa personalidade murcha.

Isso tem a ver também com o espírito do tempo que vivemos. Todos precisam de atenção, mas nem todos são capazes de aceitá-la calmamente. Ao sentir-se dependente – isto é, ligado ao outro – muita gente pira. Arruma razões fúteis para brigar, enlouquece de ciúme, sente-se sufocar pela presença do outro. Ao final, dá um jeito de chutar o pau da barraca e acabar com aquilo, para enlouquecer de dor logo em seguida. É um paradoxo triste e comum. As pessoas sofrem sozinhas, mas não conseguem permitir que alguém chegue tão perto a ponto de comovê-las – e ameaçá-las com a possibilidade de uma dor ainda maior. 

As pessoas tornaram-se vigorosamente individualistas. As virtudes do século XXI são aquelas do sujeito solitário e decidido que se impõe a um mundo amorfo. Pense nos heróis da nossa época: Steve Jobs, Neymar e até a presidente Dilma. Eles fazem tudo sozinhos, não fazem? O resto da empresa, do time, do governo, existe apenas para executar sua vontade onisciente ou para permitir que ele ou ela exerça o seu gênio autoritário.

Esse mito – da pessoa que não precisa de ninguém – é uma falsidade que invadiu o nosso modo de pensar. E até a nossa intimidade. Agora, todos seremos gênios solitários. Ou pelo menos burros independentes. Bonito é não precisar emocionalmente de ninguém.

Acho isso tudo uma babaquice, claro. Nós precisamos dos outros. Sempre. Do cara que nos vende o bilhete de metrô à mulher que nos abraça no meio da noite, somos profundamente dependentes das pessoas que nos cercam. Sem as ideias e os sentimentos alheios o nosso próprio mundo não avança – e não há nada de errado em admitir isso.

Se for o caso, claro, a gente se aguenta sozinho. Todos já passamos por isso e é bom saber que resistimos. Estar só, afinal, pode ser inevitável – mas não precisamos fingir que é a melhor maneira de viver. Na qualidade de pessoas imperfeitas e dependentes, florescemos na presença de outros como nós, para quem a nossa presença também é essencial. Entender isso ajuda a ter paciência com quem está ao lado. E a desfrutar melhor da sua presença. A nossa humanidade requer o outro. Sejamos humildes. Sejamos modestos. Quanto mais desarmados estivermos na presença do outro, melhor.

Ivan Martins

Os amores difusos

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Não é preciso ser moderno para perceber que a nossa vida comporta amores simultâneos. Podem ser paixões dilacerantes e sombrias, como nos filmes, ou pode ser algo mais suave – um sentimento de atração que, mesmo não consumado, faz da vida um lugar melhor para os envolvidos.

Todos conhecem esse tipo de sentimento.

Há gente que nós temos vontade de ver todos os dias, cuja presença nos deixa naturalmente mais alegres. Temos prazer enorme em abraçar gente assim e a conversa com elas é mais íntima, mais fácil, mais interessante. Uma alma destituída de malícia diria que isso é amizade, mas eu tenho certeza que se trata de uma forma de erotismo – sem posse, sem dor, sem pressa, mas é desejo que resiste ao tempo. Essa não é uma forma de definir o amor?

A principal qualidade dessa sensação é ser plural.

Não nos sentimos enamorados de todo mundo, mas tampouco temos esse tipo de apego por uma única pessoa. São várias. Pode ser a ex-namorada do colégio, a amiga da faculdade, a prima. Pode ser a garota da livraria ou a moça do bandejão que virou sua amiga. A lista não será grande, mas é uma pena, porque se trata de um sentimento bom. Não é gostoso ficar feliz quando toca o telefone?

Você não sai transando com essas pessoas, embora pudesse fazê-lo. Você não sofre por essas pessoas, embora possa ter acontecido. Essa relação navega entre o encantamento e a amizade, tem um pouco das duas, e fica a centímetros de se tornar inteiramente uma delas. Movemo-nos entre sutilezas.  

O que você faz com alguém que ama difusamente é ter momentos de troca e carinho, que carregam uma ponta secreta de expectativa. Se um dia você bebe demais e diz sinceridades comovidas, ela pode rir, beijar você ou ficar brava e mandar que se comporte – mas tudo seguirá como antes. Nessa relação há espaço para ser você mesmo.

Os amores difusos fazem parte da esfera de sentimentos que começa na pessoa que você escolheu e vai se expandindo num círculo para incluir outras pessoas de quem você precisa. Família, amigos, amores. Nenhum casal é uma ilha. Ao redor do compromisso que mantém duas pessoas ligadas há uma vasta teia de ligações, com diferentes graus de densidade, que vinculam o casal ao mundo. Os amores difusos são uma parte especialmente delicada dessa teia.

Isso nada tem a ver com relações abertas, porém.

Admitir a existência de carinho e desejo fora da sua relação amorosa é apenas uma manifestação de sanidade. Tentar viver todas essas sensações é uma besteira. Criar arranjos matrimoniais que acomodem esses múltiplos sentimentos é ainda mais fútil. A melhor solução para quem deseja correr atrás de todos os seus desejos não é um namoro ou um casamento aberto. É estar sozinho. Assim se conquista total liberdade, sem culpas ou constrangimentos.

Ando convencido que a nossa vida afetiva tem uma espécie de centro e que nele só cabe uma pessoa de cada vez. As nossas grandes aventura emocionais, a nossa verdadeira história íntima, são escritas ao redor dessa exclusividade. Pode ser uma paixão que não deu certo ou um casamento fabuloso de 20 anos, mas continua sendo uma narrativa entre duas pessoas. O resto é tumulto.

Os amores difusos pertencem a outra esfera, e por isso não colidem.

Eles são menos viscerais, mais leves, nos lembram que podemos experimentar diferentes alegrias na mesma existência. Sugerem que o grande amor romântico – esse que nos devora vivos, ou nos envolve suave como um lençol de linho – é apenas uma das experiências do afeto. Há outras, essenciais. Elas preenchem a existência com outra espécie de luz, igualmente necessária para mostrar nosso caminho.

Ivan Martins

Casos inacabados

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Tem gente que vai ficando na nossa vida. A gente conhece, se envolve, termina, mas não coloca um ponto final. De alguma forma a coisa segue. Às vezes, na forma de um saudosismo cheio de desejo, uma intimidade que fica a milímetros de virar sexo. Em outras, como sexo mesmo, refeição completa que mata a fome mas não satisfaz, e ainda pode causar dor de barriga. Eu chamo isso de caso inacabado.

Minha impressão é que todo mundo tem ou teve alguma coisa assim na vida. Talvez seja inevitável, uma vez que nem todas as relações terminam com o total esgotamento emocional. Na maior parte das vezes, temos dúvida, temos afeto, temos tesão, mas as coisas, ainda assim, acabam. Porque o outro não quer. Porque os santos não batem. Porque uma terceira pessoa aparece e tumultua tudo. Mas o encerramento do namoro (ou equivalente) não elimina os sentimentos. Eles continuam lá, e podem se tornar um caso inacabado.

Isso às vezes acontece por fraqueza ou comodismo. Você sabe que não está mais apaixonado, mas a pessoa está lá, dando sopa, e você está carente… Fica fácil telefonar e fazer um reatamento provisório. Se os dois estiverem na mesma vibração – ou seja, desapaixonados – menos mal. Mas em geral não é isso.

Quase sempre nesse tipo de arranjo tem alguém apaixonado (ou pelo menos, dedicado) e outro alguém que está menos aí. A relação fica desigual. De um lado, há uma pessoa cheia de esperança no presente. Do outro, alguém com o corpo aqui, mas a cabeça no futuro, esperando, espiando, a fim de algo melhor.

Claro, não é preciso ser psicólogo para perceber que mesmo nesses arranjos desequilibrados a pessoa que não ama também está enredada. De alguma forma ela não consegue sair. Pode ser que apenas um dos dois faça gestos apaixonados e se mostre vulnerável, mas continua havendo dois na relação. Talvez a pessoa mais frágil seja, afinal, a mais forte nesse tipo de caso. Pelo menos ela sabe o que está fazendo ali.

Esse tipo de caso inacabado é horrível. Ele atrapalha a evolução da vida. Com uma pendência dessas, a gente não avança. Você encontra gente legal, mas não se vincula porque sua cabeça está presa lá atrás. Ou você se envolve, mas esconde do novo amor uma área secreta na qual só cabem você e o caso inacabado. A coisa vira uma traição subjetiva. Não tem sexo, não tem aperto de mãos no escuro, mas tem uma intimidade tão densa que exclui o outro – e emocionalmente pode ser mais séria que uma trepada. Ainda que seja mera fantasia.  A minha observação sugere, porém, que boa parte dos casos inacabados não contém sexo. A pessoa sai da sua cama, sai até da sua vida, mas continua ocupando um espaço na sua cabeça. Você pode apenas sonhar com ela, pode falar por telefone uma vez por mês ou trocar emails todos os dias. De alguma forma, a história não acabou. A castidade existe, mas ela é apenas aparente. Na vida emocional, dentro de nós, a pessoa ainda ocupa um espaço erótico e afetivo inconfessável.

A rigor, a gente pode entrar numa dessas com gente que nunca namorou. Basta às vezes o convívio, uma transa, meia transa, e lá está você, fisgado por alguém com quem nunca dormiu – mas de quem, subjetivamente, não consegue se esquivar. Telefona, cerca, convida. Estabelece com a pessoa uma relação que gira em torno do desejo insatisfeito, do afeto não retribuído. Vira um caso inacabado que nunca teve início, mas que, nem por isso, chega ao fim. Um saco.

Se tudo isso parece muito sério, relaxe. Há outro tipo de caso inacabado que não dói. São aquelas pessoas de quem você vai gostar a vida toda, cuja simples visão é capaz de causar felicidade. Elas existem. Você não vai largar a mulher que ama para correr atrás de uma figura dessas, mas, cada vez que ela aparecer, vai causar em você uma insurgência incontrolável de ternura, de saudades, de carinho. O desejo, que já foi imenso, envelheceu num barril de carvalho e virou outra coisa, meio budista. Você olha, você lembra, você poderia querer – mas já não quer. Você fica feliz por ela, e esse sentimento é uma delícia.

Para encerrar, uma observação: o alcance e a duração dos casos inacabados dependem do momento da vida. Se você está solto por aí, vira presa fácil desse tipo de envolvimento. Acontece muito quando a gente é jovem, também se repete quando a gente é mais velho e está desvinculado. Mas um grande amor, em qualquer idade, tende a por as coisas no lugar. Uma relação intensa, duradoura, faz com que a gente coloque em perspectiva esses enroscos. Eles não são para a vida inteira, eles não determinam a nossa vida.

Quem faz diferença é quem nos aceita e quem nós recebemos em nossa vida. O que faz diferença é o que fica. O resto passa, que nem um porre feliz ou uma ressaca dolorosa.

Ivan Martins