Afunilando

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Antes, eu morava muito longe do trabalho. Mudei para mais perto do trabalho. O trabalho mudou e começou a exigir que eu viajasse toda hora. Mudei novamente de trabalho, para não ter mais que sair da cidade. Mudei então para mais perto desse trabalho. Por fim, comecei a trabalhar em casa.

Antes, se era Paris, que emendasse logo com Londres e Barcelona. Se eram 30 dias, que virassem 40, somando aquela semana que fiz hora extra e o feriado. Com o tempo, mais de dez dias longe de casa já me davam nos nervos. Depois, duas cidades em uma única viagem de cinco dias era coisa de gente que “se desespera com medo de não ter outra oportunidade”, o lance é ser fino e curtir uma coisa de cada vez (mentira, eu tava com preguiça, com medo). Aos poucos, Buenos Aires virou o outro lado do mundo. Agora, ponte aérea me faz tomar tarja preta.

Antes, eu ia em todas as festas que me chamavam. Passei a ir apenas às festas de gente que eu realmente conhecia. Depois, apenas nas festas de amigos que comemoram em casa (bar ou balada deixemos para os jovens que ainda têm saúde mental para banheiros imundos). Com o tempo, apenas nas festas dos poucos melhores amigos que não me irritavam, os que irritavam eu fui dando sinais de “cansaço” na amizade até que eles entenderam. Por fim, se o cara morar longe, mesmo sendo o último dos seres que ainda me comove, ameaço ir, mas tem sempre uma azia psicológica que me trava.

Antes, eu circulava meu “Guia Folha” com intensidade, pensando se nove filmes, cinco peças de teatro e quatro exposições seriam possíveis em um único fim de semana. Com o maravilhoso advento do Netflix (e também da Apple TV, do Now e da HBO), passei a escolher com energia apenas as mantinhas antialérgicas para o sofá. Até que, do sofá, eu e a TV mudamos para o quarto.

Antes, eu queria fazer muitos filmes, peças, livros, seriados, novelas, ioga, pilates, filantropia e filhos. E ter muitos amantes e orgasmos e estantes de livros e paredes cravejadas de obras de arte que me dariam um status qualquer de pessoa extremamente ligada ao movimento todo, seja ele qual for. E ser amada pelo público, mas também pelos críticos e pela galera chatola com blog intelectualizado que só 12 pessoas chatolas com outros blogs intelectualizados leem. Hoje, eu quero que a PUC não faça barulho e que os meus médicos tenham horários disponíveis.

Antes, eu tinha bode de viajar com 27 pessoas que nem gosto pra uma casa que eu nem conheço para a praia “segredinho do momento no Nordeste”, que nunca era exatamente um segredo porque todos os playboys do país tinham acesso. Depois, eu passei a ter pavor de viajar com 10 pessoas que gosto mais ou menos para uma casa que conheço mais ou menos para a praia “que já saiu de moda e por isso tá mais em conta”, que nunca era exatamente barata porque todo mundo tinha essa ideia. Com o tempo, Ano Novo tinha que ser no meio do mato, com apenas mais uma pessoa, lendo livros e com protetores auriculares contra os fogos. Agora, eu tenho taquicardia só de ouvir a pergunta “e Ano Novo, hein?” e sonho com o dia que emendaremos novembro em março, pulando toda essa presepada de peru com família, Roberto Carlos com Simone, trânsito com esperança e Carnaval com armas.

Antes, tinha que ser lindo, bem-sucedido, intelectual, culto, de esquerda, mas com carro e morando na zona oeste. Depois, bastava ser gato, intelectual, morar perto de casa e não me irritar. Com o tempo, bastava ser bonitinho e não me irritar. Hoje em dia, eu curto barba.

Tati Bernardi, publicado em: https://www.facebook.com/TatiBernardiOficial/

 

Periférico

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É libertador esquecer meu desejo de vingança, a vontade que tenho de explodir sua vida, o vício que tenho de passar mil vezes por dia, em pensamento, ao seu lado. E pisar em cima da sua inexistência e liberdade. Chega disso, só pelo tempo em que durarem estas letras e a música que coloco para reviver você, vou te amar mais esta vez. Vou me enganar mais uma vez, fingindo que te amo às vezes, como se não te amasse sempre.

Eu nunca aceitei a simplicidade do sentimento. Eu sempre quis entender de onde vinha tanta loucura, tanta emoção. Eu nunca respeitei sua banalidade, nunca entendi como podia ser tão escrava de uma vida que não me dizia nada, não me aquietava em nada, não me preenchia, não me planejava, não me findava.

Nós éramos sem começo, sem meio, sem fim, sem solução, sem motivo. Ainda assim, há meses, há séculos que se arrastam deixando tudo adulto demais, morto demais, simples demais, exato e triste demais, eu sinto sua falta com se tivesse perdido meu braço direito.

Esse amor periférico, ainda que não me deixe descoberto o peito, me descobre os buracos. Não são de suas palavras que sinto falta. Não é da sua voz meio burralda e do seu bocejo alto demais para me calar e me implorar menos sentimentos. Não é, tampouco, do seu abraço. Sua presença sempre deixou lacunas e friagens que zumbiam macabramente entre tantas frestas sem encaixe.

Não sinto saudades do seu amor, ele nunca existiu, nem sei que cara ele teria, nem sei que cheiro ele teria. Não existe morte para o que nunca nasceu.

Sinto falta mesmo, para maior desespero e inconformismo do meu coração metido a profundo, de lamber suas coxas, a pele mais lisa atrás dos joelhos. Lamber sua virilha, sentir seu cheiro, brincar com seu umbigo, respirar sua nuca, engolir sua simplicidade, me rasgar com sua banalidade, calar sua estupidez, respirar seu ronco, tocar sua inexistência, espirrar com sua fumaça.

Sinto falta da perdição involuntária que era congelar na sua presença tão insignificante. Era a vida se mostrando mais poderosa do que eu e minhas listas de certo e errado. Era a natureza me provando ser mais óbvia do que todas as minhas crenças. Eu não mandava no que sentia por você, eu não aceitava, não queria e, ainda assim, era inundada diariamente por uma vida trezentas vezes maior que a minha. Eu te amava por causa da vida e não por minha causa. E isso era lindo. Você era lindo.

Simplesmente isso. Você, uma pessoa sem poesia, sem dor, sem assunto para aguentar o silêncio,  sem alma para aguentar apenas a nossa presença, sem tempo para que o tempo parasse. Você, a pessoa que eu ainda vejo passando no corredor e me levando embora, responsável por todas as minhas manhãs sem esperança, noites sem aconchego, tardes sem beleza.

Sinto falta da raiva, disfarçada em desprezo, que você tinha em nunca me fazer feliz, sinto falta da certeza de que tudo estava errado, mas do corpo sem forças para fugir, sinto falta do cheiro de morte que carregávamos enquanto ainda era possível velar seu corpo ao meu lado, sinto falta de quando a imensa distância ainda me deixava te ver do outro lado da rua, passando apressado com seus ombros perfeitos. Sinto falta de lembrar que você me via tanto, que preferia fazer que não via nada. Sinta falta da sua tristeza, disfarçada em arrogância, de não dar conta, de não ter nem amor, nem vida, nem saco, nem músculos, nem medo, nem alma suficientes para me reter.

Prometi não tentar entender e apenas sentir, sentir mais uma vez, sentir apenas a falta de lamber suas coxas, a pele lisa, o joelho, a nuca, o umbigo, a virilha, as sujeiras. Sinto falta do mistério que era amar a última pessoa do mundo que eu amaria.

 

Tati Bernardi

Prematuro

03

Estou há duas horas numa festa “que talvez você dê uma passada”. Pessoas  falam comigo e eu concordo com um sorriso sem tônus, procurando sentido em  dentes como se eu fosse de outro país.

Decido ir embora. Estou cansada, estou com meu batimento cardíaco  descompassado e bruto chicoteando a jugular. Meus olhos brilham tanto que o  brilho escorre e escurece um pouco as olheiras. Você me deixa com cores menos  humanas.

Pago a conta, pego a bolsa e suspiro: talvez você dê uma passada. Olhar pra  porta é como buscar um fiapo de proteína num planeta com pavês de chocolate.

Decido que eu não preferia antes de te conhecer. Qualquer tormento é melhor  do que bocejar. Bolas de calcanhares entediados presas a um pé de ferro.

Só mais um pouco. Mais uns minutos. O táxi está na esquina. Você está na  porta. Não fico feliz. Não quero te ver. Não gosto de você. Me lanço para os  seus braços. Te conto que estou ossuda e seca de tanto sugar meus pensamentos.  Você salgou minha carne, me deu sabor e agora fico me chupando até não sobrar  nada. Mas sempre sobra.

Você então começa a me rodopiar. Não pense e só dance, você diz. Acho  impossível que duas pessoas que se conhecem há pouco tempo e nunca frequentaram  um desses cursos de dança se encaixem tão bem. Mas isso é racional e não explica  nada sobre o nosso abraço.

A gente se encaixa muito bem. Um na caixa do outro e a gente tentando parecer  grande pra não asfixiar o comecinho do amor. O maior carinho do mundo é se  alargar pro outro poder esticar as pernas.

Fico com a sensação de que sua orelha é do tamanho exato da metade da pele  atrás do meu joelho. Que a palma da minha mão tem o tamanho exato da parte da  sua nuca que vi quando você vai embora. Que seu pé inteiro esquenta ou esfria  minha batata da perna inteira.

Fico com a sensação que se eu desmaiar, você pode apenas me somar a seu corpo  e seguir vivendo por mim. Eu não queria acabar agora, então, por favor, me  termine pra mim.

Fico com a sensação que se eu me lançar dramaticamente pra trás, com meus  cabelos estapeando qualquer coisa esquecida, automaticamente brotarão mãos  másculas da minha lombar. Suas mãos brotam da minha lombar. Não sinto você me  segurando pela cintura. Nem sinto minha cintura segura pelas suas mãos. Sinto  que suas mãos brotam de dentro da minha cintura.

E então os pés que te trouxeram (e que sempre te levam tão rápido) agora  retiram magicamente minha cabeça da dança e substituem minhas ordens. Ser  dirigida pelo seu chão é como ser libertada de uma jaula gigante e esmagadora.

E eu consigo gostar de você apenas com as minhas células e elas, porque não  choram e nem sonham, se chacoalham quentes enquanto ignoram uma cabeça rolando  pra longe. Quanta coisa linda a gente não nega pra sobreviver num mundo de  robôs.

De repente abro os olhos. A cabeça desperta aos poucos, apenas pra dar  sentenças claras aos atropelos do peito. Eu penso que isso é gostar tanto de  você. Penso que pra caber no diâmetro pequeno entre o ombro que você beija e o  ombro que eu mesma toco, te laçando, tem que derramar um pouco.

Eu sei que esse amor é um bebê recém nascido que, por medo e vergonha, já  expeli mas seguro entre as pernas. Já tem unhas, mas depois os olhos mudam de  cor. Não posso te oferecer, pelada e arregaçada, uma vida tão pequena e à base  de líquidos, mas queria que você soubesse a batalha sangrenta que é não  sobrecarregar as delicadezas de fora com a violência de dentro.

Tati Bernardi

Tinderelas

 09

Meu amigo é branquelo e vive meio desempregado. Mas no Tinder escreveu “carioca cineasta” e colocou uma foto em pose heroica, esquiando. Os óculos escondem 60% do rosto, deixando uma onda de mistério no coração das suas pretendentes apelidadas, carinhosamente, de “tinderelas”. “Esquiar é coisa de rico e esse tipo de mulher adora isso”. Pergunto que tipo de mulher é esse e ele explica “…qualquer uma que tá a fim da coisa”.

  Na semana passada ele transou com duas. Essas duas foram escolhidas após um rigoroso teste “ao vivo” com sete jovens sonhadoras (sendo quatro num café rápido no meio da tarde “porque não pareciam merecer que eu gastasse dinheiro” e três num jantar romântico, oferecido pelo Don Juan do iPhone). Essas sete, por sua vez, foram as que sobraram de um papo virtual com doze donzelas que foram testadas pelo critério “beleza, profissão e senso de humor”. As doze foram resgatadas de uma pré-seleção de pouco mais de vinte. As vinte e poucas foram as sobreviventes de uma imensa fogueira de tinderelas rejeitadas.

  Seu dedão direito folheia fêmeas e ele dá uma aula: “tá de biquíni, eu já ignoro porque é várzea; tá maquiada, é certeza que é baranga; só tem foto do pescoço pra cima, é gorda”. Eu vou ficando deprimida em ver meu amigo chamando amor de “cardápio de açougue” e ele massageia as sobrancelhas se defendendo “eu ainda sou a fim da minha ex-namorada mas… ela era chata pra cacete e…sei lá, pelo menos essas meninas não me enchem o saco”.

  Das duas que renderam uma noite de prazer ele gostou “mais ou menos de uma” mas não o suficiente para um segundo encontro. Então, após a matemática de vinte menos doze, menos sete, menos duas, menos uma…meu amigo terminou com o maravilhoso total de zero companhia para jantar no sábado. Por isso ele está aqui em casa comendo esfihas comigo. Me deprimindo e sorteando compulsivamente mais garotas pelo iPhone. Agora ele usa o dedão esquerdo porque o direito deu cãibra.

  Qual era o defeito dessa única que você “quase” curtiu? Ele não sabe responder. E as outras que você desistiu no meio do caminho, o que elas tinham de errado? Ele não sabe responder. Alguns minutos de silêncio constrangedor e ele finaliza nossa noite com um parecer vago a respeito de tudo “nada disso tem a menor graça, vou sair dessa merda”.

  Ele vai embora e fico pensando se “merda” é o aplicativo ou o uso que se escolhe fazer dele. Se “sair dessa merda” significa abandonar o aplicativo ou abandonar o medo que ele tem de uma relação e voltar logo com essa ex-namorada que ele tanto ama (e aceitar logo que toda mulher é chata).

  Apesar de eu não cogitar hoje fazer parte do Tinder, preciso ser honesta e admitir que já estive, ao longo de todo uma vida, numa espécie de catálogo pro mundo. Esperando, algumas vezes numa festa ruim, outras na casa de amigos, conhecer um cara legal pra conversar ou dormir de conchinha. Esperando, algumas vezes blasé numa foto em preto e branco na Europa e outras mais desesperada, numa foto de biquíni em Trancoso, alguém legal para me apaixonar ou apenas transar. Usando óculos, fotos do pescoço pra cima e maquiagem porque todo mundo tem medo de não ser aceito como é.

  Mas nem por isso eu era um vaca querendo mugir mais alto num rebanho de vacas que “tão a fim da coisa” e são guiadas por um peão ignorante com seu pau na mão. Procurar alguém nunca fez de mim uma modelo sem cabeça numa vitrine. Nunca fui uma alcatra de açougue ou uma laranja de feira. Muitos podem ter me visto assim mas, mais uma vez, era o mau uso da ferramenta.

  Quis odiar o que o Tinder tinha feito com o meu amigo e escrever mal do aplicativo mas terminei odiando o que o meu amigo estava fazendo com o Tinder e escrevendo mal dele.

Tati Bernardi

O homem difícil

08

Bastam um olhar e um decote. Alguns ainda dificultam um pouco, esperando uma ou outra piadinha mais elaborada. Mas a maioria topa mesmo sem esforços cerebrais. Pegar um homem é das coisas mais banais que existe. A vida de uma mulher razoavelmente moderna e sexualmente ativa é como uma solidão assistida. O encanto acaba na manhã seguinte, quando ele faz um teatrinho bobo enquanto você reza pra ele tomar logo o copo de suco e sumir da sua frente o mais rápido possível. Então o fulano não falou nada genial a noite inteira, foi para a sua casa sem nem saber direito quem você era e agora quer mostrar que sabe formar frases?

Acabaram os bons partidos que precisam de intimidade para se soltar. De tempo para se doar. De trocas intelectuais para se excitar. De abraços e mãos dadas e juras de amor para sentir prazer. De risos e conversas malucas e indicações de filmes e trocas de livros para se interessar. De meses e meses de historinhas e almoços e jantares e festas para adormecer ao lado.

A transa deixou faz tempo de funcionar como um prêmio, um mérito, uma medalha, um troféu. A sensação de “esse cara é para poucas, para quase nenhuma, só para mim” foi substituída por “umas três amigas minhas já pegaram e disseram que é bom”. É quase como se eles viessem em catálogos, com indicações de mulheres conhecidas, que dão notas. É tipo fazer compras no Mercado Livre.

Fica difícil namorar esse cara que já virou quase um objeto num mesmo grupinho de amigas. Fica difícil amar ou querer casar com um cara que sensualizou com todas elas. Então você não é especial? Então você vai querer esse protótipo que todas as suas amigas já repassaram? E a coisa anda tão sem graça que pelo menos um terço das mulheres que conheço estão preferindo experimentar outras mulheres.

O lesbianismo, antes praticado apenas por amebinhas de 19 anos querendo causar em festinhas fúteis, agora é uma alternativa comum das balzaquianas. Sim, nós também gostamos de dificuldade. De mocinhos limpinhos, seletivos e à espera de um amor. O “grande pegador” do colegial era popular lá no colegial. Mas o cara da firma que passou o rodo desde a recepcionista até a vice-presidenta não nos interessa mais. Quer dizer, podemos até reparar nele, mas, depois dos 30, que graça tem conquistar um cara que pega qualquer uma?Que mulher vai realmente querer para pai dos seus filhos o cara que penetrou metade da população de sua cidade? Sim, eu estou tendo um acesso de puritanismo ou machismo ou tradicionalismo ou “relogiobiologicolismo”, ou seja lá o que for. Só sei que cansei. Quero parar e quero um bom moço que mereça que eu pare.

É que com 20 anos a gente até acredita que “el grande comedor” é um desafio a ser vencido. E com 25 também não pode falar muito porque está na mesma farra desenfreada que esses franco-atiradores. Com 29, está desesperada, com medo de fazer 30, e querendo se apegar a esses homens que não valem o que comem (e por isso comem a gente que, nesse momento, não vale muita coisa).

Mas, com alguma matu­ridade, preferimos o homem difícil, dedicado, bom moço, para casar. Aquele que, em vez de nos trazer bactérias e longas noites sem resposta, provoca uma vontade nova e profunda e verdadeira de ser uma grande parceira de vida para alguém.

É, eu sei, eu também não estou acreditando que escrevi esse texto. Rezem por mim.

Tati Bernardi

O mito da mulher misteriosa

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Com certeza você já deve ter visto uma dessas ou no seu trabalho, grupo de amigos ou mesmo andando nas ruas. Talvez você até mesmo seja uma dessas mulheres. É fácil reconhecer a mulher misteriosa. Ela jamais atende o celular na sua frente. Se levanta e vai atender bem longe de você.

E você não sabe se ela está narrando alguma postura do Kama Sutra ou uma receita de bolo de fubá da vovó. O toque do seu celular é discretíssimo e você nem percebe que ela saiu de perto pra atender. Porque ela também é discretíssima.

Por que terminou o namoro da mulher misteriosa? Ela enjoou dele? Levou um pé na bunda? O cara morreu? Ela ta sofrendo? Você nem sonha. Ela não conta nem pro terapeuta. Aliás, você também jamais vai descobrir se existe um terapeuta. Sua idade é entre 25 e 38 anos. Não dá pra saber só de olhar. Seu rosto se desfaz em segundos. Talvez ela more nos Jardins. Pinheiros. Veio de Curitiba. Ela é carioca? É ali por perto, você acha. Seu carro é preto ou cinza, quase certeza. Ela gosta de música, porque vive de I-pod. Mas o que será que ela escuta? Nada. você não sabe absolutamente nada da mulher misteriosa. Quando você a encontra no banheiro, dá um segundo e ela desapareceu. E você louca pra descobrir, ao menos, a marca da sua pasta de dente.

Numa mesa de bar com conversa animada ela se limita a sorrir. Numa festa importante ela se limita a aparecer por minutos e desaparecer em segundos. Em um show ela jamais canta as letras, rebola, comemora, fica suada. Aliás, quem é que já encontrou ela em algum show? Ou em algum lugar? Mas era ela, não era?

Dizer seu nome em vão parece até um pecado. Ela nunca fala de ninguém e muito menos dá assunto para alguém falar dela. Não se tem nada a dizer dessa mulher. Mas, para desespero geral de todas as outras mulheres, o mundo não tem outro assunto.

Todos os homens desejam loucamente a mulher misteriosa. Todas as mulheres desejam loucamente a mulher misteriosa. Sua personalidade incerta acaba se tornando uma personalidade fortíssima e seu jeito anulado acaba se tornando um espaço gigantesco para todos imaginarem o que bem quiserem.

E eu, como estava dizendo, sempre quis ser dessas mulheres imperfuráveis, inatingíveis, inaudíveis e incompreensíveis. Mas nunca consegui. Quando vou ver, já contei minha vida pra primeira pessoa que me deu um pouco de atenção. Já to rindo alto no restaurante porque não me controlei e fiquei feliz demais. Já escrevi um texto sobre o fulaninho da terça passada e publiquei numa revista. E o fulaninho ta morrendo de medo porque escrevi que gosto dele. E se alguém perguntar, vou dizer mesmo que goste dele. E se ele não gostar de mim, minha tristeza não será segredo para ninguém. E minha pasta de dente é para deixar os dentes branquinhos. E quando vou ver, lá se foi a mulher misteriosa que eu gostaria tanto de ser. Porque eu jamais poderia ser uma.

E sofri anos com isso. Até que resolvi conviver de perto com algumas mulheres misteriosas para tentar descobrir o que se passa na cabeça e na alma desses seres incríveis que nunca têm nada a dizer, a doer, a aconselhar, a cantar, a dançar, a morrer de rir, a fofocar, a detalhar, a exagerar, a sonhar, a dividir, a acrescentar. E descobri que a coisa era muito mais simples do que eu imaginava: nada. Não se passa nada de relevante nem na cabeça e nem na alma dessas mulheres.

As mulheres misteriosas, tão admiradas e desejadas, não passam de mulheres sem a menor graça. Elas não calam por mistério, charme ou discrição. Calam porque simplesmente não há nada mais sábio que elas possam fazer.

Tati Bernardi

Como é difícil

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Você me trouxe até aqui pessoa em carne em viva, exposta, maluca, ridícula, errada, neurótica, obsessiva, sempre entregue numa bandeja de ouro para os raros pensamentos elaborados e carinhos honestos do mundo, ainda que muitos desses meramente teatrais… Mas depois de 10 anos de terapia e muito cansaço do riso alheio eu preciso deixar você ir embora e virar uma daquelas adultas que saem pela rua com pele calejada e não com o fígado à mostra. Que difícil.

Estou na fase mais difícil da minha vida. Não sei não ser uma idiota e amo a idiota ainda mais do que toda a dor que ela me causa. Mas não dá mais pra sentir a vida com cinco anos de idade. E esperar que o mundo tenha carinho com isso, como se o mundo não estivesse ocupado com seus cinco anos de idade também. É lindo ser idiota. É a única coisa que me levanta da cama de manhã. Mas já machuca há mais de trinta anos e simplesmente não dá mais. Tudo começou a dar defeito e a me pedir proteção. Eu escuto meus órgãos e meu cérebro e meu coração me pedindo “chega”.Preciso deixar você ir… mas até pra deixar você ir, me exponho ao ridículo novamente. Como é difícil.

Tati Bernardi

Eu duvido

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Eu duvido.

Duvido que você não chame meu nome quando você sente falta de alguém, duvido que não sinta falta do meu carinho sempre tão sincero, falta de me contar como foi seu dia, as histórias da sua vida que sempre foram pra mim melhor do que qualquer novela. Duvido que você não me procure nas biscates que você pega por aí, sempre tão vazias. Vazias igual a sua liberdade idiota que nunca te serviu pra porra nenhuma. Talvez esse seja o nosso problema, eu sou completa demais pra sua vidinha mais ou menos.

Eu sinto, eu penso, eu falo, eu te conheço, isso te assusta né? “Tô invadindo seu espaço? Desculpa.” Essa fui eu, durante todo esse tempo, me desculpando por que mesmo? Me diminui pra você ficar maior, pra você não me perceber entrando na sua vida. Se você pudesse sentir o quanto isso dói você quem iria se desculpar. Eu queria ligar pra você, e te falar sem pausas tudo que eu ensaio toda vez que você me magoa, mas nunca digo pra não te magoar, afinal você não me faz mal por mal, e talvez esse seja o pior mal que se possa fazer a alguém, tão natural. Bobagem, como se algum ensaio no mundo fosse me deixar firme depois do seu ‘alô’. Então é isso, tô te escrevendo!

Sempre fui mais segura com as palavras. Tô te escrevendo pra talvez um dia te enviar, mas to escrevendo. E não é sobre você dessa vez, é sobre mim. Sobre o quanto eu sou boa, igual a mim tá difícil meu bem! Sobre como eu não preciso usar cinco centímetros de saia e um decote no umbigo pra ser mulher. Sobre como, ainda assim, só eu sei fazer de você um homem. Sobre muitas coisas, mas principalmente, sobre quantos homens eu poderia estar saindo nesse exato minuto.

Não é com você, é comigo sabe? Por exemplo, EU te idealizo nesse momento como o melhor, não que você seja. Acho legal você brincar com a sorte, mas se eu fosse você não teria tanta certeza da minha posse assim! Talvez ninguém tenha te avisado ainda, então desculpa se eu vou te dar essa notícia sem te preparar antes, mas a porra do mundo não gira em torno do seu umbigo! Ficou chocado? Acontece.

Só queria te dá um conselho, em nome da nossa amizade e meu carinho por você, tira uma mão da liberdade e segura um terço. Fica assim, agarrado nas duas coisas sabe? E reza, reza muito pra não aparecer ninguém que mexa comigo enquanto você fica brincando de não saber o que quer. Porque eu sou amor, e ainda que não seja o seu, essa é a minha essência ! E você não deve acreditar muito nessa ideia, pelas tantas vezes que eu quase fui, mas um dia eu vou.. Sempre foi assim!

Mas deixa eu te contar um segredo: Se eu for, eu não volto.

Tati Bernardi

O dia que o amor morreu

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Na manhã que o amor acabou tinha urina no chão da sala. Uma pocinha bem pequena perto da planta. Fiquei na dúvida se era água caída do pratinho do vaso ou malcriação de bicho. Talvez eu tivesse regado e dado um quarto de antibiótico pra cachorra que estava com tosse. Na dúvida, pensei em fazer de novo. Sem saber, como expliquei, se era repetido. Água em dobro e metade do remédio seriam demais. Mas não fazer, caso fosse a primeira vez, seria de menos. Eu seco, eu rego, eu medico. Os imperativos simples e práticos de verbos serviçais burlavam dores pessoais de pronomes.

Na manhã que o amor acabou, almocei na minha mãe. Ela contou que a colcha colorida não tinha saído bonita na foto do site da imobiliária. Eu chorei e ela quis saber se colcha colorida me lembrava alguma coisa. Não lembrava. Mas as frases com alguma graça e nascidas pra nada emprestavam o charme da sua promessa, sempre me sabendo em urgências dosadas. Eu retornava com a felicidade direta de quem é procurada antes de se proteger e apertava suas letras comprovando, com minha digital, uma existência catalogada. Meu pensamento era um carimbo no horizonte toda vez que você gostava de ouvir.

Foram duas lágrimas. A primeira despencou rapidamente, como um suicida magrinho e sem talento. A segunda ficou um tempo ninada pelas bordas até que caiu já quase seca nem passando da metade do rosto. O sofrimento foi tão ralo que sequer alcançou o nariz. Fiquei com preguiça de alguma saudade surpresa crescer escondida e me apunhalar em brechas de fraqueza e carinho, mas ela nunca apareceu e agora, se chegasse, seria só uma fantasia bordada de última hora pelo tédio. Na manhã que o amor acabou, eu cismei que probióticos me protegem de não pegar gripe e que pego gripe sempre que o amor acaba. Me enchi de iogurte e isso me mostrou uma novidade em ver um amor acabando: era momento de adorar cabisbaixa uma história mas eu estava mais ocupada em me lançar cuidadosa aos dias que nem existiam.

Que nome tem estar cagando pra única coisa mais importante do mundo? Veja que desde o começo do ano passado, só pra citar tempos recentes, o amor já acabou três vezes. Acabou em março, em agosto e agora em fevereiro. Mas, só porque o cinismo nos dá gosto pelo jogo do contrário, posso dizer também que, desde o começo do ano passado, o amor já começou três vezes. Começou em janeiro, em junho e em novembro. Temos uma média de três a cinco meses tanto pro amor começar quanto pra ele acabar. O que significa que logo mais tamos aí. E depois tamos aí de novo. Como se essa coisa que tanto aconchega a loucura, como se essa coisa que tanto acidifica os cortes, como se essa coisa que tanto vulcaniza os tamanhos. Não passasse de um ping pong exato que satiriza as metáforas de profundidade.

E só porque o cinismo nos dá gosto também pelo jogo do tudo a mesma merda. Até pouco tempo, tinha essa coisa de Nina Simone regida pela buzina de muco nasal no papel higiênico. Mas pra cada dia daquela semana em que o amor acabou, eu tinha uma entrega importante de trabalho e, se não me engano, uns dois almoços bem importantes e pelo menos um dos meus médicos bem difíceis de marcar. A vida seguiu tão normalzinha, eu falei pra minha analista. Tanto que você tá estranhando, ela respondeu. É. Sorrimos sem intensidade e duração, da casca que agora separava meu sangue de salivas. São águas que correm paralelas com uma pele no meio. Ela só disse “olha que bom” e ser tratada como uma pessoa não foi mais tão horrível. Eu amo pouco agora que não morro mais? Ela não respondeu. Depois mordi bem forte meu braço sem definir se era homenagem, despedida ou inconformismo. Ficou a suspeita de um espasmo de vício humilhado pela desimportância do costume.

Tati Bernardi