Sobre desapegos

18

Tô desapegando das manias. Mania de guardar gente desnecessária aqui dentro, como se fosse lixo acumulado. Mania de querer sempre ver o melhor, o mais incrível de alguém quando, sinceramente, nunca tem. E a pior, então, é essa mania sorrateira de entregar de bandeja o coração nas mãos de quem não presta (E não presta mesmo! Eu, que brinco de amar demais, só me deparo com gente que leva a sério essa ideia de brincar com os sentimentos alheios): tô quase saindo dela. Sabe essa mania de querer fazer do amor meu fantoche? Tô desapegando. Porque amor não obedece ordem lógica e manipular sentimento é coisa de gente que sente saudade de si mesma. Tô desapegando dessa mania de ancorar a minha vida em almas capengas. Tô obedecendo mais a minha natureza: eu sou ser de ausência, de êxodo, de saudade. Não preciso ficar em ninguém, eu só preciso, vezenquando, voltar pro abraço de alguém e seguir. Nada mais justo. Sabe essa mania de duvidar demais de que, depois da tempestade, tem arco-íris? Tô desapegando. Mesmo com minhas dúvidas, apesar das minhas críticas, o Sol continua nascendo. E a mania de achar que o mundo não pode ser o mesmo sem mim? Desapeguei. Mesmo depois de esconder o galo embaixo da cama pra que ele não cante e o dia não raie, o Sol entra pela janela, o dia continua florindo. Com galo ou sem galo (comigo ou sem mim) o dia continua nascendo. Tô preferindo fazer o melhor que posso hoje, sabe? Sem essa mania de ir deixando pra depois, pra mais tarde, pra só quando Deus sabe! Tô me lavando com água de realidade e me esfregando com a bucha da renovação pra me limpar dessas manias de ficam na gente como sujeira… Elas já não me servem, não se encaixam. Não me culpo pelas manias egoístas que tinha – a gente se acostuma com certas utopias – mas sei que hoje eu prefiro desapegar do que não me engrandece a alma!

Marielena Fonseca

Que sangra sem parar

17

Sinto falta dos olhos verde-goiaba me fitando. Da fala mansa correndo pelo pescoço. Das mãos grandes palmilhando o torso. Do carinho na nuca. Dos lábios rosados grudados nos meus. Do cheiro de JOOP na roupa de cama. Do restinho de café que ficava na xícara, das três camisas – azul, branca e coral – penduradas no cabide para marcar o território . Da cerveja e do amendoim de sexta-feira. Das juras de amor. Daquele papo que seria para sempre. Dos dois filhos e um cachorro. Da casinha de madeira, na praia e com duas redes. Da paz assoviando por dentro. De enxergar coraçãozinho nas nuvens. De tudo de bonito que existia em nosso relacionamento e ele pisoteou. Trocou por uma aventura. Por um par de seios fartos. Por uma noite com outra silhueta na cama de um motel. Preferiu uma ejaculação em coxas ‘novas’. Amassou e picou em pedacinhos a nossa história de amor. Eu sinto falta, não posso negar, mas, a decepção me faz o querer bem longe, longe do meu coração moído, que sangra sem parar.

Kauane Mello

A casa da minha alma

16

Tenho a alma livre. E por ser livre ela vaga por aí e faz morada no teu sorriso. Entra pelas frestas dessa muralha construída ao teu redor e se aloja na casa da tua alma – desculpa, mas tua alma vive no sorriso, não nos olhos.

Minha alma então puxa assunto com a tua, quer desvendar, desnudar e dividir os souvenirs das viagens a outros sorrisos, do mochilão que ela tem feito desde o dia que eu concedi a alforria. Mas a tua foge, se esconde, tira a chaleira do fogo e se fecha no quarto. Não quer conversa.

 A liberdade da minha alma assusta a tua. Assusta os lugares por onde ela andou, desinibida acenando para sorrisos despretensiosos, e assusta mais ainda o fato que, mesmo sendo livre e podendo estar em qualquer lugar, ela quer ficar aqui, braço com braço com a tua.

E livremente ela fica, sentada no sofá da sala da casa da tua alma, esperando um café ou uma conversa a toa, mesmo que o mundo lá fora tenha os melhores cafés para papilas apuradas. Não importa, a paz da minha alma está no sorriso que eu só vejo quando a tua alma resolve olhar pra mim e me diz com os olhos que me espera pra dividirmos a vida. Não agora. A vida ainda não voltou pra fervura.

Marina Oliveira

Garotos de aluguel

15

Sorria como se você quisesse isso, repito. Mas sou amador na atuação. Não tem mais choro que resolva, não tem mais buquê que dê jeito, não tem mais nada que se possa fazer. Ela me aluga – e mal sabe que se espalha feito erva daninha pelo meu peito. Encrustada em cada uma das vísceras. Ela não liga pra minha dor e perfura fundo as minhas entranhas para se instalar ali. Já disseram uma vez que ganha mais quem tem o poder. Quem ama mais só tem a culpa e o consolo da companhia. Não é justo comigo. Mas com amor é mais caro. E é assim que eu pago o preço de estar ali. Não tem mais coração quebrado ou briga de madrugada. A hemorragia sentimental já atingiu níveis alarmantes. Eu já tive um AVC emocional e ela nem ligou. É que ela não paga por isso. Paga só pela parte social. A minha parte – de verdade – ela descarta. Sem saber que. Não tem jeito. É dela.

E faz do jeito que bem entender sem nem me visitar. Enfermo ou inferno, tanto faz. Se perguntarem por aí, ela diz que acabou. Assim, sem dor nenhuma. Sem cólera nem complicações. Se perguntarem como eu vou, ela diz que eu fico. Sem nem pensar duas vezes. Dizem que eu vou sobreviver. Que a gente sempre consegue sobreviver a quem ama menos. Mas não garantem a recuperação total sem sequelas ou cicatrizes. Os médicos me perguntam o peso e eu digo que é muito. Que dói as costas. Que quebra os ossos. Que prende à cama. E homem não chora. Só pode ser mesmo uma infecção no canal lacrimal. Mas terminou. Sorria como se você quisesse isso. Não tem mais dor. Não tem mais nada. Em coma induzido pelo abandono. Com uma placa de aluguel atravessada no peito.

Daniel Bovolento, publicado em:  http://entretodasascoisas.com.br/

(Des)feita

14

Você não acha que já tirou muito de mim? Meus sonhos, meus planos, meus carinhos, meus beijos, meus pensamentos, eu. O que mais pode querer? Você tirou partido de mim e me deixou (des)feita em pedaços. Tem noção do quão difícil é se reconstruir, juntar cada parte outra vez, refazer o que o desamor desfez? Não, não responda. Você não sabe, é claro que não sabe. Aliás, nunca soube de nada em relação a mim, nem ao menos se interessou em saber. Você desnudou meus sentimentos e me despiu de todo e qualquer amor próprio. É difícil amar por dois, oferecer a alguém o que não tenho nem para mim mesma. Tem noção do quão ridícula me senti vestindo-me apenas de esperanças? Você abusou de tudo o que lhe dei e se recusou a me dar qualquer coisa que eu pedia. E eu só pedi um pouco de ti.
____________

Não, eu não tirei nada de ti. Você que me deu seus sonhos, seus planos, seus carinhos, seus beijos, seus pensamentos, você — sem perguntar se eu queria. Eu só quero que você pare de me culpar por suas dores, por sua decepção, por seus desamores. Nunca quis te destruir, deixar-te em pedaços. Você me encaixou em seus vazios impreenchíveis e depois se sentiu incompleta quando eu te deixei. Como você pôde deixar alguém te destruir dessa forma? Não faça mais isso, moça. Você já é completa. Essa ideia de que alguém nos completa é besteira. Ou então todos vivemos pela metade? Os seus vazios fazem parte de você e nada nem ninguém pode preenchê-los, entenda, aceite, não chore. Precisamos desses espaços vazios em nós para não sufocarmos. Eu sempre soube muito de ti, tanto a ponto de te deixar. Vista-se, moça, e não tire mais a roupa — nem seu amor próprio — para qualquer um. Você teve de mim a reserva de amor que guardo para as outras pessoas. O resto é meu.

Daniela Lusa, publicado em http://confrariadostrouxas.com.br/

A mulher incrível

13

Lembro cada segundo que vivi ao lado da minha mulher incrível. A gente naquele pub, ela de blusa azul, os cabelos loiros, olhos hipnotizantes, vindo me abraçar, o beijo mais intenso da vida. Sarcástica, cheia de frases, definições e comportamentos…

Você vai encontrar uma mulher incrível. E vai perdê-la: As mulheres incríveis não são como as que você sempre sonhou. Elas são bem mais. Geralmente elas chegam no momento em que você, por alguma razão, não vai conseguir segurar a bronca.

Aproveite, guarde esse momento. Cedo ou tarde ela vai embora e a culpa vai ser sua. Mas vale. Encare. Sofra. Bote pra fora. De uma forma bem melhor do que eu com essas mal traçadas. Depois me conte. Depois dela, seu coração estará calibrado para tudo. Ou quase. Se ela reaparece, você casa.

Alexandre Petillo

Sopro quente de ternura para um dia frio

12

E então ele chegou de longe. Veio de um lugar onde não há contas e dívidas. Surgiu das dobras do mundo que fica para lá do fim dos parques, depois das últimas ruas asfaltadas, além das árvores mais velhas do chão.

De lá, onde um anjo nos espera na porta, onde as mulheres e os homens e as crianças e os velhos dançam sorrindo velhas canções de amor e alegria, chegou o frio que tudo transforma.

Primeiro ele veio tímido. Veio vindo, devagar e sempre como a felicidade que chega aos poucos contando suas gotas de alegrias breves. Voltou num ventinho frio varrendo as casas, bagunçando os cabelos das moças, trazendo de volta os cheiros de velhas lembranças nas mãos de novas gentes. Depois, abriu os braços de gelo e envolveu a vida soprando o vento que arrasa certezas puídas e adormece pequenas vontades.

Agora ele está aqui. Resfriando a moça linda que lê cartas de amor, o músico de cabeleira imensa que é um pai amoroso, o bom amigo que nos serve seu vinho e suas histórias, cozinha para a amiga cantora e enche a casa de amor no aroma de seu macarrão instantâneo.

É o mesmo frio que, num café elegante, aproxima o casal recente. Ela revela sua intolerância a lactose e gente chata, ele pede água com gás. O mesmo frio que recolhe as formigas ao fundo de suas cavernas de afeto e os velhos ao conforto de suas meias. É esse frio que aproxima os cachorros dos colos de seus donos, que reata romances, adia despedidas, resgata velhos casacos e antigas saudades do armário. O frio que aquece o comércio e acende sentimentos solidários, altera nossos modos e bagunça tanto sentimento guardado aqui dentro, mofando escondido.

Ah… gente amiga. Fosse o mundo mais justo, no inverno nos seria permitido vivermos mais perto uns dos outros. E à noitinha, quando a manta gélida se torna ainda mais fria, estaríamos juntos em casa, contando nossos casos e nossas coisas. Assistindo quietos à beleza invadir violenta nossa vidinha ao redor do fogo e revirar tudo sob nossos olhos de dia a dia, tão desacostumados do que não sejam os prazos para já, as contas, as disputas imbecis.

Esses olhos que ardem de ver diferente doem com o novo, dilatam as pupilas, abrem o ângulo e fecham o foco em paisagens novas que nos acendem, arrepiam e empurram para frente como os tropeções que nos trouxeram até aqui. Esses olhos que querem tanto novas visões agora pedem para ver os velhos amigos por perto.

Juntos assim, passaríamos todo o inverno, dividindo nossa comida estocada durante o ano. Compartilhando nossas leituras e histórias sob o calor da nossa amizade, animais mansos vivendo em união, esquilos consumindo suas nozes no interior de suas árvores ocas. Amigos sendo amigos de seus amigos. Até nos separarmos nos primeiros brotos da primavera seguinte, rumo a novas histórias que serão contadas em nosso encontro no próximo inverno.

Aqui faz frio, venta gelado. É esse frio que vem de longe, do lugar onde as mães encontram seus filhos que partiram ou nunca chegaram, lá onde a brisa não cessa e o perdão brota escandaloso nos canteiros, nos xaxins e nas lixeiras. Lá onde as urgências não existem e a vida segue devagar em seu longo, leve e sereno sem fim. Tudo isso agora está aqui. E aqui está fazendo frio.

Publicado em http://www.revistabula.com/

Nunca mais nos vimos

11

Eu estava sentado lendo enquanto você separava os fios de cabelo, cantarolando uma canção qualquer entre os lábios, nem lembro quanto tempo faz. Poderíamos estar fazendo qualquer outra coisa; lendo juntos, ouvindo aos discos do John Mayer juntos, sentados no chão do quintal comendo tangerinas no frio do outono juntos, mas de todas as opções possíveis, optamos – e não fazia pouco tempo – colocarmos um abismo profundo e tedioso entre a gente. Daí me veio a esperança de que um dia você voltasse, com aquelas pintinhas de sol no rosto vermelho e todos os sonhos do mundo na sua mochila velha de couro. Que preenchesse aquele espaço cinza entre as poltronas antigas e aqueles dois estranhos íntimos fingindo viver juntos – nós dois. Esperança de que houvesse novamente bilhetes no espelho do banheiro, do sexo com roupas no chão da sala não premeditado. Esperança de que ela estivesse ali entre nós, a vontade, o tesão, o ódio, a moralidade reduzida a nada, e jogasse os pratos de porcelana barata de novo em mim, por puro ciúme.

Eu poderia ter me levantado e te dado um beijo sem aviso, te arrancando o fôlego só pelo desespero do nosso incômodo silêncio. Talvez você me olhasse como quem não entendeu nada e retribuisse, mas tive receio. Há algo de muito errado quando existe o receio de incomodar alguém amando; isto deveria ser um sinal nítido do fim de todas as coisas. Quando ela, a confiança decidiu ir embora da nossa relação, decidimos desafiar a natureza dos sentimentos e achar que tudo poderia continuar gravitacionando ao nosso redor, mas foi tudo ruindo, pouco a pouco, caindo e se quebrando; irremediavelmente nos abandonamos. Nos tornamos aqueles casais agridoces nos restaurantes e cinemas; anestesiados. O que foi feito do amor? Me levantei então e guardei o livro. Passei por você como alguém passa por um velho amigo de colégio e fui em direção a porta do quarto. Não precisamos dizer nada um ao outro, mas ambos sabíamos que naquele momento um adeus seco ecoou pelo corredor. Você olhou pra trás e fez menção de dizer algo e então se deteve. Fim. Me lembrei de você porque começou a tocar ‘ Your Body is a Wonderland’ – lembra? Eu me lembro. E olhando pro porta retrato tive a sensação de te ver ali naquele balanço de pneu velho, gargalhando. Olhei mais de perto e então engoli indigesto o sorriso, percebi sem querer que se tratava de outra pessoa estranha. Arrumei meus óculos e sem querer disse muito dissimuladamente, mas não tanto que eu não percebesse – ‘Nunca mais nos vimos.’ – É, nunca mais.

 

Rodrigo Lima Romano

Eu odeio joguinhos mas preciso aprender a jogar

10

Tipo você.
Eu gostaria de perguntar a noite como foi o seu dia, mesmo tendo falado com você durante ele todo. Sei lá, inventaria algum assunto, transformaria mais uma viagem de ônibus em uma viagem cheia de detalhes, com gente dormindo, rindo, ouvindo música alto, gente de todo o tipo. Eu detalharia cada detalhe pra você. Assim, redundante mesmo.

Gostaria de saber quem são seus amigos para que eu pudesse ilustrar cada um deles na minha cabeça toda vez que menciona algum deles. Eu gostaria de ter a liberdade de poder te ligar a qualquer hora. Gostaria de te chamar pra sair mais vezes do que já saímos. Eu gostaria de te dizer que ficaria feliz em te ver alguns dias a mais durante a semana. Gostaria de poder te abraçar depois de uma risada nossa. Gostaria de te dizer sem titubear que te vi linda todos esses dias até aqui.
Gostaria de tanta coisa sobre você mas ainda não é hora de saber.

Apesar de eu saber que não é algo bom, eu gostaria de poder acelerar o tempo, só hoje, só essa semana, só esse mês, gostaria de ver o tempo correr pra saber se vou sofrer com você. Eu sei que isso é surreal, que essa história de tentar prever só me deixa mais longe do que é real, mas fazer o quê, é algo que eu gostaria mas não é algo que vai acontecer.

Gostaria de não ter que medir minhas palavras com você. Não que eu deixe de ser quem sou quando estamos conversando, mas sabe, eu tenho pressa em ser feliz. Tenho pressa em poder tocar o seu rosto sem aviso-prévio, tenho pressa em poder te abraçar de surpresa nos corredores do supermercado, tenho pressa em te ver deitada no meu peito no cinema, tenho pressa em te ver de pijama numa noite de sábado de edredom. Mas eu sei, nem adianta ninguém me dizer, eu já sei que eu preciso esperar.

A dor faz a gente acumular muita coisa boa pra despejar em uma pessoa.
Sortuda quem for essa pessoa.

[…]

Eu sei que tenho que esperar, mas você sabe o quanto eu já te esperei?
Eu sei que é preciso te dar um tempo, mas você sabe quanto tempo eu já estou aguentando por mim mesmo?
Eu sei que eu preciso te dar espaço, mas você sabe quanto espaço sobra aqui entre os meus braços?

Eu só tenho pressa de você por ter certeza que tenho muita coisa boa pra te oferecer.

[…]

Eu não quero estragar tudo. Não quero te assustar.
Não de novo.
Não quero ser quem mete o pé pelas mãos alegando ser na melhor das intenções. Aliás, eu nem preciso das melhores, as boas já podem bastar. É que tenho dessas, não sei viver do mínimo se sei que posso dar o máximo. Mas estou aprendendo a me controlar.
É que quando a gente vê que a vida recomeça a gente volta a se empolgar como na primeira vez.

Um instante inédito na vida é capaz de ocultar qualquer reprise do passado.

Márcio Rodrigues, publicado em http://umtravesseiroparadois.wordpress.com/